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O sentido das hierarquias



O sentido das hierarquias

É conhecido como escritor, mas foi, principalmente, sobre o que faz como biólogo que Mia Couto falou na entrevista concedida ao diário i e publicada no início da semana que termina. “Quando sais de manhã para o mato qual é a tua rotina de biólogo?” foi a primeira pergunta que a entrevistadora, Laurinda Alves, lhe colocou, dando, assim, o tom a uma conversa que depressa se encheria de crocodilos, elefantes, hipopótamos e leões. “Os animais deixam entrar os homens nos seus territórios?”, quis saber a entrevistadora. “Bem, estive num lugar onde seis pessoas foram comidas por leões em seis meses”, responde o entrevistado.

O diálogo prossegue com a pergunta que se impunha: “Por que é que os atacaram?”; e a resposta não é propriamente inesperada: “Já não tinham mais nada para comer. Este é um sistema determinado pelo homem, que se impõe no espaço, no acesso à água, na delimitação do território e há animais que não aceitam estas fronteiras”. Em Moçambique, acrescenta Mia Couto, não há um único dia em que alguém não seja morto por um animal. O biólogo e escritor refere, depois, a periculosidade dos animais. Os que devem ser mais temidos são os leões. A seguir importa ter cuidado, por esta ordem, com os crocodilos, os elefantes, os hipopótamos e os búfalos.
“Tens medo de ser comido por eles?”, pergunta Laurinda Alves. “Não”, responde Mia Couto que explica que pode sempre acontecer alguma coisa de surpresa. No entanto, diz ser cauteloso sempre que vê um animal. “Não tenho nenhuma reacção nem sou como aquele australiano que ia sempre mexer nos bichos. Eu procuro ser aceite pelo animal”.

O diálogo, sempre muito interessante, prossegue com Mia Couto desvendando alguns segredos do ofício. Questionado sobre a que distância consegue ver se um animal o está a aceitar, o biólogo e escritor explica que “é mais ou menos instintivo mas nós sabemos que há códigos que funcionam. Por exemplo o elefante, que é o mais complicado, comunica sempre connosco. Normalmente manda-nos embora. Abana a cabeça para mostrar que não está a gostar da nossa presença. Há uma fêmea que se destaca da manada e se aproxima para vir ter connosco para nos assustar e se ela faz aquele balanço de orelhas, muito teatral, com a tromba lançada na nossa direcção, o que temos que fazer é fugir”. Mia Couto também foge, claro. “Temos de respeitar sempre a vontade do animal. Quando as orelhas ficam coladas ao corpo e ela recolhe a tromba, então aí já não vale a pena fugir porque já é demasiado tarde, a não ser que estejamos dentro de um carro. Se estivermos a pé, já é muito difícil escapar”.

Não havendo, em Portugal, animais selvagens, a não ser os que vivem mais ou menos domesticados, os biólogos portugueses têm de se dedicar ao estudo de outras faunas, não sendo, talvez, de desdenhar o instrutivo proveito que, para tal, advirá da observação de reuniões como a que, para dar um exemplo actual, serviu, na semana que passou, em Lisboa, para a feitura das listas de candidatos a deputados pelo PSD, agora sujeitas a determinadas obrigações formais, como é o caso da que estabelece a inclusão de uns quantos homens, umas quantas mulheres e uns quantos filhos de presidentes de câmaras municipais.

Haverá quem julgue que não é próprio da Biologia estudar o modo como, para as tais listas, são convidadas a entrar umas pessoas e instadas a sair outras e como, por fim, se hierarquiza quem ficou. Quem assim pensa, desdenhando apetecíveis analogias com a vida selvagem – e não faltam políticos que, como os animais, não apreciam qualquer intromissão nos territórios que dominam –, poderá dizer que os biólogos não reparam em ecossistemas caracterizados pelo saltitar hierárquico de pessoas; da que estava em décimo primeiro lugar que salta para o quinto; da que estava em quarto, mas fica sem lugar; da que estava em terceiro e passa para décimo sétimo; da que não estava em lugar algum e foi para o segundo, etc. O certo é que alguns, todavia, reparam.

É o caso de Henri Laborit, um biólogo que se encarregou de falar de política. No livro Éloge de la fuite (Paris: Robert Laffont, 1976), dedica-lhe um capítulo, nele registando algo que, evidentemente, se pode aplicar a muitos outros (e, às vezes, inesperados) domínios. Diz o cientista, que os cinéfilos conhecerão por ter inspirado e participado no filme, O meu tio da América, realizado por Alain Resnais, que, “quando se compreende que os homens são capazes de se matar uns aos outros para estabelecer a sua dominação ou para a conservar, ficaremos tentados a concluir que a doença mais perigosa para a espécie humana não é nem o cancro, nem as doenças cardiovasculares, como nos tentam fazer acreditar, mas antes o sentido das hierarquias, de todas as hierarquias”. Pensem nisso.

Os dias da semana
Eduardo Jorge Madureira Lopes