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A Pensar no ARTUR QUINTAS

As casas, com piso térreo para lojas e adegas, piso de habitação ou sobrado e telhado de duas águas, eram tradicionalmente feitas com a matéria prima existente na zona - pedra (xisto ou, em algumas áreas, granito) e barro. Os próprios telhados eram cobertos com lajes, seguras por calhaus reboludos, para não voarem. Casas rebocadas ou com telha havia, até à década de quarenta, muito poucas em toda a serra.
Apenas o tamanho das habitações, o número de lojas e um ou outro pormenor (como cantarias nas janelas ou uma varanda de madeira); permitiam saber as que pertenciam às famílias com mais posses.

A este traçado austero, de linhas simples, sóbrias e volumes compactos, interrompidos apenas por portas baixas e janelitas fundas, correspondia geralmente um interior escuro e acanhado, de divisões em madeira.

A cozinha era o lugar onde se passava a maior parte do tempo, sobretudo no Inverno. Apesar disso era um sítio escuro e de dimensões reduzidas.

O fumo que, na ausência de chaminés, se escoava lentamente através das lajes do telhado, ficava nos dias de vento a pairar desconfortavelmente no interior.

Nestes pequenos espaços sobreaquecidos, completamente negros devido à fuligem e escassamente iluminados por uma única janelinha estreita e uma candeia (acesa dia e noite, durante o Inverno) acotovelavam-se famílas quase sempre muito numerosas.

Se agora os poucos objectos e peças de mobiliário destas cozinhas, uma vez recuperados e expostos à luz do dia, revelam comovente simplicidade e sóbria beleza, para os seus utilizadores eles não passavam de formas vagas, sombras indistintas. A harmonia de que nos apercebemos estava então subterrada numa espessa camada de miséria e pobreza.

No centro da cozinha havia uma pedra lisa, grande e grossa - a lareira, sobre a qual se fazia o fogo. À volta, num plano mais alto, um estrado de madeira em semi-círculo servia de banco para toda a família. Por cima das cabeças ficava o caniço, onde eram secas as castanhas e curados os enchidos.
Todas as cozinhas tinham um caldeirão, que era uma corrente de elos de ferro, presa ao caniço. O caldeirão ficava a prumo sobre a lareira e na extremidade inferior tinha um gancho com que regulava, através de subida dos elos da corrente, a distância dos tachos e caçarolas em relação ao fogo.

Os utensílios de cozinha assentavam numa trempe de caldeirão. Havia também as trempes de pés, que serviam para cozinhar sem utilizar o caldeirão ou para colocar ao lado deste, aproveitando o calor lateral da fogueira.

(...) Quase todas as casas tinham, na cozinha ou na pequena divisão contígua a esta, um móvel de parede onde se guardavam pratos, talheres, copos, caçarolas e alguns outros utensílios de cozinha. Frequentemente estes móveis tinham por baixo um espaço para os cântaros com água - eram as cantareiras, que em muitos casos estavam encaixados na parede para ocuparem menos espaço.

As refeições eram servidas numa pequena mesa móvel que, segura por um cravelho à parede, abria e fechava conforme as necessidades, não ocupando por isso espaço útil na cozinha.

Noutros casos utilizavam-se as Tripeças ou Trapeças, minúsculas mesas bastante leves e quase com o feitio de um banco que, depois das refeições, eram arredadas para um canto.

A gestão de um tão minguado espaço, a que normalmente correspondia um fraco repasto, era uma tarefa delicada, cujo bom sucesso dependia de um código hierarquizado de acesso aos alimentos, conforme a idade e o sexo de cada um: - a comida era colocada sobre a mesa, num grande prato fundeiro (a bacia), e cada um, munido de um garfo, ia picando para a boca, a parte que lhe cabia em sorte (evidentemente que este processo não era isento de conflito, sobretudo entre os mais velhos e os mais novos).
(Dr. Paulo Ramalho, in Tempos Difíceis - Tradição e Mudança na Serra do Açor)